Trechos do livro "Confiança e Medo na Cidade", onde o eminente sociólogo Zygmunt Bauman fala sobre o medo propagado pela vida na cidade, que abrange desde os muros construídos para isolar até a globalização.
O medo na cidade:
Quando a solidariedade é substituída pela competição, os indivíduos se sentem abandonados a si mesmo, entregues a seus próprios recursos[...]
[...]a estressante sensação de insegurança que, como se dizia, não teria existindo sem a ocorrência simultânea de duas "reviravoltas" que se manifestaram na Europa[...]A primeira, sempre segundo a terminologia de Castel, consiste na "supervalorização" do indivíduo, liberado das restrições impostas pela densa rede de vínculos sociais. A segunda[...]consiste na fragilidade e vulnerabilidade sem precedentes desse memso indivíduo, agora desprovido da proteção que os antigos vínculos lhe garantiam.
Se a primeira revelou aos indivíduos a estimulante e sedutora existência de grandes espaços nos quais implementar a construção e o aprimoramento de si mesmo, a segunda tornou a primeira inacessível para a maior parte dos indivíduos. O resultado da ação combinada dessas duas novas tendências foi como aplicar o sal do sentimento de culpa sobre a ferida da impotência, infeccionando-a. Derivou disso uma doença que poderíamos chamar de medo de ser inadequado.
Quanto mais tempo se permanece num ambiente uniforme[...]mais é provável que se "desaprenda" a arte de negociar significados em um modus convivendi.
Como as pessoas esqueceram ou negligenciaram o aprendizado das capacidades necessárias para conviver com a diferença, não é surpreendente que elas experimentem uma crescente sensação de horror diante da idéia de se encontrar frente a frente com estrangeiros. Estes tendem a parecer cada vez mais assustadores, porque cada vez mais alheios, estranhos e incompreensíveis[...]
[...]os espaços públicos são locais em que[...] se descobrem, se aprendem e sobretudo se praticam os costumes e as maneiras de uma vida urbana satisfatória. Os locais públicos são os pontos cruciais nos quais o futuro da vida urbana é decidido neste exato momento. Uma vez que a maioria da população planetária é formada de moradores de cidades, ela é também o futuro da coabitação planetária.
Tornar os bairros residenciais uniformes para depois reduzir ao mínimo as atividades comerciais e as comunicações entre um bairro e outro é uma receita infalível para manter e tornar mais forte a tendência a excluir, segregar.
A fusão que uma compreensão recíproca exige só poderá resultar de uma experiência compartilhada, e certamente não se pode pensar em compartilhar uma experiência sem compartilhar um espaço.
[...]Com o passar do tempo, a exposição à diferença transforma-se em fator decisivo para uma convivência feliz, fazendo secar as raízes urbanas do medo.
[...]hoje compreendemos que esse "progresso para a civilização" não é uma conquista, mas uma permanente luta cotidiana. Combate jamais totalmente vitorioso, que muito provavelmente não alcançará sua meta, mas que continua a ser encorajado pela esperança de vencer.
Globalização:
[...]O nosso agir ou não-agir só pode "fazer a diferença" quando se trata de questões locais, enquanto para as outras questões, declaradamente "supralocais", não existem "alternativas"[...]
Também as situações cura origem e cujas causas são indubitavelmente globais, remotas e obscuras só entram no âmbito das questões políticas quando têm repercussões locais. A poluição do ar - notoriamente global - ou dos recursos hídricos só diz respeito à política quando um terreno, vendido abaixo do custo - em razão da presença de resíduos tóxicos ou de alojamentos para refugiados políticos -, está localizado aqui ao lado, praticamente em "nosso quintal", aterradoramente próximo, mas também "ao alcance da mão".
A progressiva comercialização do setor da saúde, que nada mais é que um efeito das competições desenfreadas entre os colossos farmacêuticos supranacionais, só entra em campo da política quando o hospital da área começa a se deteriorar, ou quando diminui o número de residências para idosos ou de instituições psiquiátricas. Os habitantes de uma cidade (Nova York) tiveram de enfrentar a devastação causada pela evolução global do terrorismo, e os conselhos municipais e prefeitos de outras cidades tiveram de assumir a responsabilidade de garantir a segurança individual, ameaçada doravante por forças inimigas absolutamente inatingíveis para as administrações municipais. A devastação global dos meios de sobrevivência e o deslocamento de populações dos locais onde tinham moradia estável há muito tempo só entram no horizonte da atividade política por meio daqueles pitorescos "imigrantes econômicos" que inundam estradas outrora monótonas.
Em poucas palavras: as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização. Os cidadãos e aqueles que foram eleitos como seus representantes estão diante de uma tarefa que não podem nem sonhar em resolver: a tarefa de encontrar soluções locais para contradições globais.
Como Castells sugeriu em outra oportunidade, a criação de um "espaço de fluxos" instaura uma nova (e global) hierarquia de dominação por meio da ameaça de abandono. Esse "espaço de fluxos" pode "fugir de qualquer controle local", enquanto (aliás, justamente porque) "o espaço físico é fragmentário, circunscrito e cada vez mais desprovido de poder em relação à vesatilidade do espaço de fluxos. As localidades só podem resistir negando direito de desembarque aos fluxos desenfreados, para constatar em seguida que eles desembarcaram em localidades vizinhas, cercando e tornando marginais as comunidades rebeldes".
[...] os camponeses e os citadinos podem até começar a lançar mísseis, mas é o mercado global que irá fornecê-los.
A Namíbia agrícola está liberando um excesso de mão-de-obra enquanto o crescimento de recursos financeiros da Namíbia urbana é insuficiente para acolher esses "sobrantes". Por algum motivo, os lucros extras prometidos pelo crescimento da produtividade na agricultura não permaneceram nas regiões agrícolas e também não foram para as cidades. Segundo van Donkersgoed, poderíamos nos perguntar por quê, e teríamos de responder exatamente como ele: globalização.
Tradução: Eliana Aguiar.
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